Entre o assistencialismo e a escolarização na Educação Infantil: A dicotomia institucional entre a creche e a pré-escola persistente na Rede Municipal de Educação de Cuiabá

Abstract

Buscamos analisar a dicotomia estrutural e persistente entre a Fase Creche (0 a 3 anos) e a Pré-escola (4 e 5 anos) na Rede Municipal de Educação de Cuiabá (RME-Cuiabá). O estudo tem como objetivo investigar de que modo representações sociais sobre infância, aprendizagem e desenvolvimento infantil, arraigadas na sociedade cuiabana, se expressam e se institucionalizam na organização da Educação Infantil, produzindo e sustentando tal cisão no interior de uma mesma etapa da Educação Básica. A análise evidencia que essa dicotomia manifesta-se em duas dimensões interligadas. A primeira refere-se à fragmentação da atuação docente, na qual profissionais com formação superior em Pedagogia têm sua prática restrita a apenas uma das fases da Educação Infantil, dificultando a apropriação integral da etapa. Sustentada por diretrizes administrativas internas, essa segmentação contribui para a hierarquização simbólica entre creche e pré-escola, fragiliza a identidade docente e compromete a compreensão do percurso formativo da criança como um continuum educativo. A segunda dimensão diz respeito à ruptura na experiência educativa da criança. A transição da creche, frequentemente associada a uma perspectiva assistencialista e ao cuidado integral, para a pré-escola, marcada por uma lógica escolarizante e preparatória, configura um ponto de inflexão estrutural. Essa ruptura torna-se especialmente sensível na passagem dos três para os quatro anos de idade, quando ocorrem alterações abruptas no tempo institucional, na presença adulta e na proporção criança–profissional. Destacam-se, nesse processo, a redução significativa da jornada diária, o aumento expressivo da proporção criança–adulto e a exigência de uma autonomia presumida, fatores que tensionam a segurança emocional e o desenvolvimento infantil. Em diálogo com a literatura nacional e internacional, incluindo as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil, a Base Nacional Comum Curricular e referenciais da OCDE e da NAEYC, o trabalho reafirma que a qualidade da Educação Infantil está intrinsecamente associada à densidade relacional, à presença adulta qualificada e à continuidade do desenvolvimento da criança. Conclui-se que a superação da dicotomia entre creche e pré-escola requer o alinhamento entre concepção de infância e organização institucional, por meio da construção de uma Referência Municipal de Qualidade (RMQ), capaz de assegurar a indissociabilidade entre cuidar e educar e de fortalecer a Educação Infantil como tempo presente de vida, relação e formação humana.