O Espiritismo em contexto rural: inserção e legitimação espírita em uma região católica de Minas Gerais, um estudo de caso (1920 a 1940)

Abstract

A religião é um dos fenômenos mais intrigantes da história da humanidade. É praticamente impossível compreender e explicar a dinâmica de qualquer sociedade sem se atentar para sua configuração religiosa. No caso do Brasil, com sua população majoritariamente cristã, as pesquisas acadêmicas acabam por priorizar os feitos e efeitos de um catolicismo colonizador e, concomitante, de um crescente protestantismo, principalmente aqueles ditos pentecostais e neopentecostais. Todavia, os elementos espirituais e mediúnicos têm ganhado cada vez mais relevância nos debates sobre religião e religiosidade, algo capitaneado por uma nova geração de pesquisadores que tem Vitor César Presoti com um dos representantes. Um bom exemplo disto é, sem dúvida, esse livro que tenho a nobre missão de apresentar: “O Espiritismo em Contexto Rural (…)” fruto de uma pesquisa criteriosa e original realizada por Presoti junto ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora. A dissertação, que rendeu ao autor seu título de mestre, agora ganha nova edição e fica disponível ao público como livro publicado pela Editora Uniesmero. Com a orientação de Marcelo Ayres Camurça – um dos mais notáveis especialistas em estudos sobre religião e religiosidade no Brasil – Vitor Presoti se debruçou sobre o fenômeno espírita num pequeno distrito da cidade mineira de Barbacena chamado Ponte do Cosme. A questão-problema que perpassa todo o livro pode ser resumida mais ou menos assim: como o Espiritismo Kardecista fincou raízes tão sólidas num distrito bucólico submerso a uma forte tradição católica barbacenense? A resposta para esta pergunta os leitores encontrarão nas páginas desta obra, que valem muito a pena a leitura! O professor Reginaldo Prandi, no início da segunda década do século XXI, afirmou em seu livro Os Mortos e os Vivos: introdução ao espiritismo que no Brasil “embora haja espíritas nascidos em famílias kardecistas, na maioria dos casos ser espírita ainda representa uma escolha pessoal, uma mudança”. O diagnóstico é pertinente e respaldado pelos seus pares pesquisadores: o espiritismo é majoritariamente uma religião de escolha e excepcionalmente uma religião herdada. Levando em consideração a peculiaridade do espiritismo em Ponte do Cosme (tradicional, consolidado e transmitido geracionalmente), conclui-se que o objeto de pesquisa abordado por Presoti caracteriza-se muita mais como uma exceção do que como uma regularidade quando comparado a fenômenos similares do espiritismo no Brasil. Paradoxalmente, a excepcionalidade do espiritismo em Ponte do Cosme convive com regularidades históricas, na medida em que sua sociogêneses apresenta uma relação indissociável e interdependente com o desenvolvimento e institucionalização do espiritismo kardecista em Minas Gerais e no Brasil, como bem demonstrado pelo autor. Norbert Elias e John Scotson, no clássico Os Estabelecidos e os Outsiders, afirmaram que “os problemas em pequena escala do desenvolvimento de uma comunidade e os problemas em larga escala do desenvolvimento de um país são inseparáveis”, e complementaram: “não faz muito sentido estudar fenômenos comunitários como se eles ocorressem num vazio sociológico”. De certo, encontramos nO Espiritismo em Contexto Rural uma análise que relaciona o contexto micro de Ponte do Cosme com o contexto macro do movimento espírita brasileiro. No primeiro capítulo, esta relação micro-macro ganha os primeiros contornos com a abordagem do “desenvolvimento do espiritismo no Brasil”, uma sinopse que apresenta origens, processos, transformações, limites, institucionalização e identidade do espiritismo kardecista nos âmbitos nacional, regional e local. Na sequência, o leitor encontrará um capítulo inteiramente dedicado aos meandros da pesquisa: o trabalho de campo, a seleção e análise das fontes, as entrevistas. Afinal, trata-se de uma pesquisa interdisciplinar que manipula procedimentos teóricos e metodológicos da Etnografia, da Sociologia, da História e, claro, da Ciência da Religião; e, como tal, carece de apresentações e explicações ao leitor. Todo trabalho acadêmico que se prese, realizado sobre os auspícios da ciência, não pode se limitar a apresentar resultados. É preciso, com igual importância, apresentar a forma metodológica pela qual os resultados foram alcançados. No terceiro e último capítulo, Presoti nos presenteia com uma apresentação detalhada e criteriosa do espiritismo em Ponte do Cosme. As histórias do Centro Espírita Amor à Verdade (CEAV) se entrecruzam com as histórias dos irmãos Pati e Alexandrino Pereira e seus descendentes. As relações indissociáveis e interdependentes entre a Instituição CEAV, os fundadores e os indivíduos contemporâneos dão forma sociológica ao espiritismo em Ponte do Cosme que, na excepcionalidade de se propagar como uma religião herdada, também apresenta características regulares do espiritismo kardecista brasileiro, como a cura mediúnica e a caridade propulsora desta doutrina. Vale destacar que a pesquisa que deu origem a esse livro foi realizada no mesmo momento em que a humanidade enfrentava os incontáveis efeitos da Pandemia da Covid19. Essa informação, nada contingente, revela muito das dificuldades enfrentadas pelo pesquisador, dadas as condições restritivas de distanciamento e/ou isolamento social. Dificuldades que se converteram, de um lado, em crescimento profissional e autonomia intelectual de Vitor Presoti e, de outro, nessa obra que tive a prazerosa missão de apresentar. Espero que este livro seja lido e relido por muita gente, certo de que seu conteúdo é uma contribuição valiosa para os estudos sobre religião no Brasil, mais especificamente sobre o espiritismo kardecista em terras tupiniquins. Esta leitura eu recomendo. Reinaldo Azevedo Schiavo Doutor em Sociologia, Historiador Professor do Curso de Ciências Socias da Universidade do Estado de Minas Gerais – unidade Barbacena. Matipó-MG, 19 de novembro de 2023.